Reconstruindo memórias dos anos 60
(Testemunho do primo Pe. Carlos Manuel Gonçalves, filho do tio Magno)
Reconstruindo memórias dos anos 60:
Férias de Verão na Ervedosa
As histórias são como habitáculos. Vivemos na, pela, e através de estórias que contamos e recontamos para viabilizarmos a nossa própria história. A história cria e recria a vida, une-nos e separa-nos, constituindo-nos em pessoas únicas e irrepetíveis. Habitamos nas grandes histórias das nossas culturas. Somos vividos pelas histórias das nossas famílias, das nossas comunidades e dos nossos lugares. Este envolvimento pregnante da história é especialmente importante para sermos e sentir-nos plenamente. Somos, cada um de nós, os lugares onde os relatos da nossa terra e tempo se tornam, ainda que parcialmente, narráveis.
Porque estou convicto que a história cria e recria a vida; porque a história que hoje me viabiliza está impregnada de histórias contextualizadas no tempo e no espaço geográfico (Ervedosa); porque sou o lugar onde os relatos da nossa terra e do nosso tempo se tornam narrativas vivas, aceitei o desafio, dos inovadores jovens criadores da narrativa cyber-space da nossa terra, para colaborar na reconstrução das estória vividas na Ervedosa para as experienciarmos plenamente e as assumirmos gozosamente como parte integrante de nós mesmos.
Intencionalmente situo-me nos anos sessenta na pacata Ervedosa. Era então um adolescente irrequieto/inquieto e questionador! Se calhar é a ternura do meridiano da vida em que me encontro que me faz remeter aos turbulentos e apaixonados anos 60 da luta pelos valores da democracia, dos Beatles e do Maio 68 que exigia o realismo da criatividade e do impossível. Não considero uma atitude regressiva, muito menos de saudosista de “velho do Restelo”, o facto de trazer à história de hoje as estórias da minha adolescência, mas penso ser um momento de integração, – que fui adiando pelos inúmeros investimentos que apaixonadamente pretendi fazer, por exemplo, a dupla carreira –, da minha história que comporta a história da terra que me viu nascer e crescer para o Futuro.
Foi naqueles tempos obscuros que na Ervedosa, isolada dos grandes e pequenos centros de decisão e da cultura, sem estradas (a não ser os caminhos dos carros de bois e/ou machos e, já agora, do táxi do Tio Chico Morais que, muito provavelmente, não ganhava para as suspensões!), sem luz eléctrica (a não ser a luz da candeia a petróleo!), sem água canalizada (a não se a que jorrava da cristalina e inesgotável Fonte das Nogueiras!), e muito menos rede de esgotos (a não ser as ruas sempre generosas a receber a todos e a tudo, até mesmo os conteúdos fertilizantes dos históricos penicos!), – mas sempre bela e arejada e ecológica!–, começou a nascer as sementes da inquietação de lutar contra a desigualdade de oportunidades a que sempre fomos votados pelos decisores políticos. Também os ideais do Maio 68 fervilhavam, implicitamente, num povo que nunca vendeu a cara à luta exigindo o realismo do impossível.
Foi nesta década que muitos filhos desta terra se lançaram na grande aventura da emigração para o Brasil, França e Alemanha, à procura melhores condições de vida das suas família que no seu país lhes eram negadas ou adiadas.
Foi nesta década que se deu, simultaneamente, o início da grande revolução cultural (deixem-me que a denomine deste modo, sem qualquer conotação ideológica!). Até então, apenas uma pequena minoria (a família dos Morais/Moás por circunstâncias familiares do ocaso!) intentava o investimento na formação, como instrumento fundamental de autonomia para romper o círculo estrutural de pobreza, pela negação do acesso à cultura. Sublinho uma data marcante desta revolução cultural, o Verão de 65, quando um punhado de “7 ganapos” (5 rapazes e 2 raparigas, colegas do mesmo ano!), contrariando todas as lógicas de reprodução da cultura dominante do meio, provindos de famílias diferenciadas e mui nobres, pela sua dignidade e pobreza, arriscam uma aventura decisiva nas suas vidas, mobilizados exclusivamente pelo acesso à formação que lhes era obstaculizado pelo determinismo geográfico de ter nascido na Ervedosa. Penso, ser de justiça salientar o contributo decisivo das escolas (seminários) da Igreja Católica que tornou viável este projecto legítimo dos filhos desta terra, que apenas contavam, para continuar a sua formação após a 4ª classe, com o antigo Liceu e a Escola Industrial e Comercial de Bragança, possibilidades inacessíveis para a esmagadora maioria das famílias da nossa terra. Este foi o início de uma aventura que seria incontornavelmente continuada. Saliente-se que, do número mágico inicial (SETE), 5 são licenciados em variados cursos, alguns com projectos de doutoramento em fase adiantada ou mesmo a terminar.
Penso que, a partir daí, nada seria como dantes embora integrando a genuína cultura daquelas gentes sábias, mesmo sem escolaridade. O acesso às oportunidades de formação e à cultura são os grandes dispositivos impulsionadores da inovação e da mudança. O clima cultural da terra transformou-se! Recordo, com alguma nostalgia, as férias de verão na ainda isolada Ervedosa, mas com um forte impulso revitalizador. Ervedosa convocava, congregava e acolhia os jovens das aldeias circundantes!
A vida fervilhava naqueles(as) adolescentes e jovens que organizavam iniciativas culturais e de lazer diversificadas: a prática do desporto na capela; a reflexão e o confronto de ideias na Taberna do Tio e Pai Magno – “in vino est veritas“ –; o baile na casa da Tulha; o teatro na velha escola do tio Benjamim; o convívio saudável nas românticas e ternurentas caminhadas para o S. Cristóvão e para os Pinheiros, – oportunidade, bem aproveitada, para os romances amorosos de adolescentes –; as tardes calorosas de Domingo no sempre bucólico Tuela... Sublinho, a festa era construída inteiramente pelos recursos criativos da comunidade e não era imposta pela sociedade de consumo e muito menos pela cultura “urbano depressiva” que vai alienando e castrando a criatividade das gerações mais jovens.
Porque narrar é viver e dar vida, quis partilhar estes pedaços da minha identidade num gesto de gratidão aos que me apoiaram na construção desta decisiva tarefa da existência humana (pais, colegas de percurso, família alargada/comunidade) e, nesta actividade narrativa, possa contribuir para a construção de uma autêntica identidade da comunidade de Ervedosa. Espero que este contributo inicial possa suscitar novas acções narrativas para me ajudar a tornar mais vital o meu sentido de pertença a essa bela Terra que me viu nascer para a vida.
Porto, 15 de Janeiro 2002
Carlos Manuel Gonçalves